segunda-feira, maio 5

Notícias e factos


Era um daqueles casais por volta dos oitenta anos, reformados.
Ele passava a maior parte do tempo no café, beberricando e petiscando com os amigos, enquanto ela ficava em casa. Depois chegava a casa de mau humor: a violência verbal e física aconteciam facilmente.

Naquele dia feriado, tinham lanche de aniversário em casa de um familiar e ela esmerou-se no vestir e no pentear.
Esperou em vão: ele chegou muito depois da hora combinada, e quando ela manifestou a sua irritação, puxou de uma cadeira e acertou-lhe com ela. Os vizinhos ouviram-na gritar "Ai que ele me matou!", e a seguir dois tiros.

Chamaram a polícia, a ambulância, e entretanto ouviram mais um tiro: o assassino tinha tentado suicidar-se. Os filhos, avisados, vieram a correr. Um trazia a caçadeira, e jurava que mataria o pai para vingar a mãe. Entretanto, o homem foi internado em coma; não é operável, pois a bala está alojada numa zona cerebral delicada.

Um diário de grande tiragem noticiou a coisa deste modo: o casal era muito unido e dedicado; andavam sempre de mão dada; o homem foi ao café claramente despedir-se dos amigos; voltou para casa e perpetrou o duplo crime porque os filhos não davam qualquer apoio ao casal, e ele não podia suportar o sofrimento da mulher, enfraquecida pela idade. Mais se dizia que o marido morrera no Hospital nesse mesmo dia.

Na sexta feira, numa loja a dois quarteirões dos acontecimentos, as pessoas contavam a versão do dito jornal como se fora a verdade absoluta.

Hoje de manhã, o homem continuava em coma no Hospital.

5 comentários:

Metódica disse...

Que horror!
Como é que as pessoas que conheciam o casal se deixam influenciar com tanta facilidade por uma noticia de jornal...!

Unknown disse...

A verdadeira questão é: Como é que nenhuma pessoa que conhecia o casal foi capaz de "acordar o marido encostando-lhe um facalhão de matar o porco ao pescoço"...

Eurydice disse...

Esse é um aspecto importante, sim, mas o director do jornal também merecia o facalhão: o modo como foi desvalorizado um facto brutal como este, atribuindo-lhe uma dimensão de cuidado amoroso, é imoral.

Um caso mais de continuada violência doméstica foi reciclado: "a culpa é dos mais novos, que o velhinho, coitadinho, só quis poupar a mulher ao sofrimento prolongado"!
Não sei se é uma campanha para promover a eutanásia doméstica se para limpar a vergonha dos costumes nacionais, mas é completamente indecente a postura de branquear as coisas mais obscuras da nossa sociedade.
É conivência na sua mais baixa forma.

Unknown disse...

É claro que o “director do jornal também merecia o facalhão”. Mas por mais reprovável que tenha sido a sua tentativa de “branquear as coisas mais obscuras da nossa sociedade”, ele nada podia fazer para evitar o assassinato da senhora.
Mesmo que aproveitasse a notícia para fazer uma campanha contra a violência doméstica, isso ajudaria a diminuir o número de casos? Qual a percentagem de Portugueses que lêem jornais? Uma percentagem muito baixa, para que a dita campanha surtisse efeito. Se ainda fosse numa novela…mas aí não, eles têm temas muito mais importantes para tratar…
Por outro lado os vizinhos, a família, se não estivessem apenas “à espera de lerem a notícia no jornal”, podiam ter evitado toda esta tragédia.
É claro que jornalismo é outra coisa. Aliás, há muitos anos que por mais disparates, mentiras e infâmias que a comunicação social invente, não me consegue surpreender.
Já a dita “sociedade civil”, com este tipo de actos de violência extrema…de facto somos um país não de brandos, mas sim de fracos costumes.

Eurydice disse...

Uma coisa tenho que reconhecer, Português: a vida é mais importante do que as notícias. Sem dúvida que era mais importante ter-se evitado a morte da senhora do que evitar que o jornal faça um banquete com a notícia.
Mas, apesar disso, é revoltante!