sábado, outubro 6

Duas Avós, Uma Neta


Acto 1: Avó A, Avó B, Neta e Polícia Virtual
- Não, eu quero esse lugar!
- Neste lugar está esta senhora. Fica quieta!
- Mas eu quero ficar aí!
- Vai-te lá sentar e fica quieta! Estás a ver ali daquele lado da Avenida? É a Polícia! Se não ficas quieta, levo-te já lá!
- Ó comadre, não devia meter-lhe medo com a Polícia, porque eu já lhe ensinei que deve ir ter com um polícia se estiver atrapalhada!

Acto 2: Avó B e Neta
- Vá, não despenteia a avó!
E a pequenita vá de atirar as mãos ao cabelo grisalho e de o o espetar com toda a força.
- Está sossegada! Olha que tu apanhas! Magoaste a avó! Para a próxima não te trago comigo!
- Não fui eu! - e ria-se, voltando a enfiar as mãos no cabelo e puxá-lo de baixo para cima.
A cena repetiu-se durante dez minutos, enquanto o autocarro não chegava.

Acto 3: Avó B, Neta, Cidadã Stressada, Avó A, e Chófer Virtual
A pequenita entra a correr pelo autocarro dentro, atropelando toda a gente, e vai lá para o fundo, enquanto as avós picam os bilhetes. Não tem mais de quatro anos.
A avó despenteada senta-se no banco antes do meu, a outra avó ocupa um dos lugares individuais do outro lado da coxia. Aquela começa a chamar:
- Camila, anda para aqui, para o pé da avó!
- Mas eu quero ir aqui!
- Anda lá!
- Mas por que é que eu não posso ir aqui?
- Porque aí é muito atrás e há muitos bichos! - diz a outra avó.
- Anda lá! Olha que o senhor chófer zanga-se contigo! E para a próxima não te trago comigo!
Mais dez minutos do mesmo, com variantes em relação aos lugares onde a miúda quer ficar (agarrada ao varão na plataforma, sentada no primeiro banco da segunda metade do autocarro, e tudo o mais que lhe ocorre). Entretanto, o autocarro já circula, dando curvas em rotundas e mudando de direcção em ruas estreitas.
Até que alguém, em completo desespero, diz:
- Desculpe lá, mas essa menina tem que se sentar ou ainda se magoa! Não é nada comigo mas já não aguento o stress! Tu és muito teimosa, e não devias, porque a avó é que sabe, que ela é grande e tu és pequenina. Devias fazer o que a avó manda, porque ela é tua amiga e ela é que sabe!
- É teimosa, pois claro, e vai ser cada vez mais!... ela não a educa! - diz a outra avó.
- Anda lá: olha que esta senhora até te deu o lugar para te sentares aqui!
( A senhora era eu, que estava sentada no banco ATRÁS da Avó B desde o princípio da viagem.)
Depois de mais umas teimosias (- Quero ir para o banco atrás do chófer!) e resistências, a criança lá se sentou onde era suposto. Finalmente, foi um sossego no autocarro.

Este foi mais um daqueles casos em que a responsabilidade não é assumida, antes remetida para o polícia, o chófer, ou qualquer outro que esteja por perto. Não se assume a autoridade inerente ao estatuto, não se assume o papel, não se aproveita para dar alguns rudimentos de ética e de respeito pelos outros - para EDUCAR, em suma. A criança - por sinal simpática e alegre - não tem a mais pequena ideia de que os outros existem e têm o seu próprio mundo. Nem sequer as avós.
Quando crescer com abundantes predicados de monstrozinho egoísta, não faltarão as queixas e o espanto. E se por acaso não aguentar a pressão da realidade, a frustração e a desilusão, nunca hão-de de perceber que lhe calcetaram o caminho para a depressão e a esquizofrenia. Está a caminho mais um adulto infeliz e irresponsável!

5 comentários:

Rogério Freitas Sousa disse...

são os meninos de estufa que se vai vendo...
leve a descrição.

Anónimo disse...

infeliz, não tenho a certeza

mas irresponsável é garantido :p

Eurydice disse...

Olá, Nuxa!... Bem vinda! :)

Eu acho que a vida acaba por ser insuportável para quem não se habituou a gerir limites. Mas se calhar há um fundo de moralismo nesta convicção. E a vida NÃO é moralista, de todo!...A maior parte do tempo, assistimos ao triunfo dos porcos.

Anónimo disse...

Quando não se quer que uma criança faça uma coisa, a ultima coisa que se deve dizer à criança é: Não faças isso. Pois é precisamente isso o que a criança vai fazer a seguir =P
Mas concordo que um bom puxão de orelhas de vez em quanto ajuda a "crescer".

Eurydice disse...

É mesmo esse o problema, Raiz: ou se aplica a autoridade, ou não!... DIZER e não fazer cumprir ainda é pior do que não dizer nada, porque a criança habitua-se a não dar qualquer importância ao que lhe dizem. Ora, ela PRECISA de aprender com os mais velhos e de ser protegida por eles.